VIVE MELHOR QUEM SAMBA !!!

"Eu digo e até posso afirmar: vive melhor quem samba" (Candeia)

quarta-feira, 10 de maio de 2006

Visita domiciliar: relato de uma médica de família!


TRABALHO DE CAMPO:
Rotina no Programa Médico de Família de Niterói
Relato de Experiência
Lucia Elena Ferreira Leite

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São 9 horas. Subo a ladeira íngreme, carregando uma pasta e o livro de cadastro do setor, o que, pelo peso, já dificulta a subida. Na pasta, tudo o que preciso para executar o trabalho de campo planejado para este dia: ficha de cadastro, algumas guias de referencias para consultas e exames já marcados, ficha de gerência para captação do recém-nato de Francisca que nasceu há 3 dias, prontuário de D.Maria, hipertensa acamada, para realização da consulta domiciliar, algumas anotações de nomes de pacientes faltosos à consulta, crianças que não compareceram ao módulo para vacinação, moradora nova para cadastrar, gestante no último trimestre que não compareceu à consulta.
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Durante a caminhada novas demandas vão surgindo: Carlinhos de Valéria está com febre; Dina me chama para falar alguma coisa sobre o exame da mãe; Ailton confirma a data da consulta. Alguns falam comigo apenas, para dar bom dia, para comentar sobre o calor que está fazendo, para serem simpáticos, para sentirem-se íntimos. Muitas orientações são dadas, consultas combinadas, resultados de exames vistos, ali mesmo, na ladeira, de pé, sentada no meio-fio, ou na soleira da porta de algum morador, enquanto eu subo e a comunidade desce o morro para cuidar de seus afazeres.
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Percorro as vielas estreitas com facilidade, em direção às casas que pretendo visitar. A música alta vem das casas misturando-se os vários ritmos e estilos: funk, sertanejo, forró, gospel, pagode. Muitos ainda não acordaram, porque não têm porque acordar. Alguns estão sentados na porta de casa, pensando e esperando solução para o café da manhã. Pessoas que vivem um dia de cada vez. Que não fazem planos a longo prazo.
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Na esquina encontro um grupo de três mulheres que conversam e riem alto de alguma coisa. Conheço todas elas. Sei seus nomes, onde moram; conheço seus dramas pessoais. Chego perto e elas dividem comigo o assunto em pauta: estão falando mal dos homens. Ouço com atenção, troco idéias, aproveito a conversa para dar alguma orientação na linguagem que elas entendem. Rio muito de suas colocações, admirando a sabedoria daquelas guerreiras, que já passaram por vários companheiros, que são chefes de família, que criam seus filhos ansiando por uma vida melhor, se não para elas, pelo menos para eles. Mulheres como eu. Mães como eu. Que perderam seus filhos, seus irmãos, seus companheiros para o tráfico, ¨porque eles escolheram o caminho errado¨, no seu entender. Mulheres que sofreram todas as agruras da vida e, no entanto, conseguem gargalhar das suas mazelas.
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O trabalho de campo rotineiro, diário, metodológico, do Programa Médico de Família permite o conhecimento pleno da área geográfica e da população, rompe as barreiras sociais e culturais, facilita o contato que permite a troca de conhecimentos, o desenvolvimento das ações de educação e promoção da saúde, de prevenção e controle das doenças. Ao mesmo tempo, simplifica, humaniza e enriquece a relação médico-paciente, sem descaracterizar esta relação. O médico se transforma no amigo, no irmão mais velho, que teve acesso a conhecimentos, que ouve e não julga, que ensina e aprende, que socializa a informação, que ensina o autocuidado, e devolve ao paciente a responsabilidade pela sua saúde.
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Às 11:30, de volta ao módulo, faço o inventário das ações planejadas e não planejadas que consegui executar. Sinto-me leve, feliz, apesar da sede, do calor, do cansaço físico. Sensação de dever cumprido. Fico pensando no quanto sou afortunada por estar vivendo esta experiência inigualável: o trabalho, a escola da vida, permitindo, promovendo a minha evolução como pessoa, lapidando o profissional, melhorando o ser humano.
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Nota do autor: os nomes citados são fictícios

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